terça-feira, 23 de junho de 2020

A iniciação do Sr. Bolseiro




"Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca nojenta, suja, úmida, cheia de pontas de minhocas e um cheiro de limo, nem tampouco uma toca seca, vazia, arenosa, sem nenhum lugar onde se sentar ou onde comer: era uma toca de hobbit, e isso significa conforto." 

- J. R. R. Tolkien



"O Hobbit", escrito por J. R. R. Tolkien, conta a história de uma criaturinha pequena (menor que um anão) com pés grandes e peludos que adora o conforto, a comida boa, o sossego de uma tarde tranquila com seu charuto espalhando no ar anéis de fumaça e que é chamada para uma grande jornada, onde terá que lutar contra trols, gobelins, wargs e, finalmente, o terrível Smaug, o Dragão. Apesar da aparente simplicidade que o livro carrega, a história de nosso querido Sr. Bilbo Bolseiro nos traz valiosas lições espirituais e descreve um rito iniciático básico de todo aquele que se predispõe a "nascer de novo". 

Como todo Hobbit, Bilbo vive num vilarejo muito bonito, aconchegante e afastado dos perigos do mundo. Leva sua vida tranquilamente sem muitas aventuras até que surge a figura do sábio - ou do mestre -, representado por Gandalf, o Cinzento, e o convoca para uma jornada muito perigosa: recuperar um tesouro perdido que está sendo protegido por um grande mal, Smaug. 

Aqui já vemos elementos importantes de uma estrutura iniciática: a alma que vive em seu mundo fechado em si mesmo (isso é o que representa o Condado), que não possui uma visão da totalidade da Realidade (incluindo seus perigos), vê-se chamada para uma jornada onde terá que abrir mão de tudo aquilo que lhe é caro. Mas essa jornada representa a ascese da alma na busca daquilo que é mais sagrado, sendo representado aqui pelo grande tesouro.

É natural nos mitos iniciáticos essa estrutura, mudando apenas a representação desses elementos. Por exemplo, temos a mesma estrutura nos mitos órficos, quando Orfeu desce ao Hades para resgatar sua amada, ou quando Cristo desce à mansão dos mortos e ressurge ao terceiro dia. Essa eucatástrofe ocorre em quase todo rito de iniciação. 

Entretanto, Bilbo só consegue vencer a inércia inicial e ganhar a motivação necessária para começar a empreitada por que ele é descendente dos Tûk, um ramo de sua linhagem que contém os Hobbits aventureiros. Ora, o que significa esse lado Tûk de Bilbo senão a parte mais elevada de nossa alma, que sempre nos lembra que temos que fazer nossa ascese? 

Mais uma vez, a simbologia disso se encontra nos demais mitos sagrados. No hinduísmo, por exemplo, podemos dizer que o lado Tûk representa o atman - ou o Eu superior. No cristianismo, Jesus nos conta que o Reino de Deus está em nós. Tudo isso para mostrar-nos que a ascensão da alma para o sagrado só é possível porque ela já carrega em si a presença de Deus.

A jornada nos leva a busca desse tesouro precioso mas é preciso derrotar ainda o Dragão, ou seja, o puro mal. Não é preciso ir muito além para perceber que Smaug representa os aspectos mais baixos da alma, e por isso deve ser derrotado.

Ao final de tudo, a eucatástrofe está completa: Bilbo, que mergulhou fundo nas trevas ressurge um novo homem (ops, um novo Hobbit). Ele retorna para seu lar, porém nunca mais será o mesmo, pois ele contemplou a verdade fora do estreito círculo do si mesmo.

Mas, não devemos esquecer que isso tudo só foi possível por que existe uma Providência Divina que esteve ao lado do Sr. Bolseiro todo o momento. Nas palavras de Gandalf: "Você não supõe que todas as suas aventuras e escapadas foram guiadas por mera sorte, só para seu próprio benefício, supõe?"

O elemento da Providência surge aqui para dizer que todo nosso processo de ascese depende, em última instância, da vontade Divina. "Os seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, dizendo: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível." (Mt, 19, 25-26)





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