domingo, 12 de julho de 2020

1984: Winston Smith e o encontro com o passado, a descoberta do belo e a presença do sagrado Parte I




Guerra é Paz
Liberdade é Escravidão
Ignorância é Força



- Lema do Partido do Grande Irmão




O romance 1984 de George Orwell ocorre num mundo onde a revolução comunista venceu e se instalou. Ele se divide em apenas três regiões que volta e meia entram em guerra entre si, volta e meia unem-se, duas a duas, e permuta-se de aliados em outros tantos momentos. Nosso protagonista, Winston Smith, vive na região da Oceânia, onde impera o partido único do terrível Grande Irmão, figura que faz menção a Stálin. 


Winston trabalha no Ministério da Verdade, onde é responsável por alterar notícias do passado para se adequarem aos interesses dinâmicos do Grande Irmão. Na verdade, existe todo um prédio com inúmeros funcionários que trabalham diariamente com esse fim. O controle do passado é de suma importância para o Partido, pois quem o possui controla toda a História - passado, presente e futuro. 

O mundo que Winston vive é tal que ninguém mais consegue ter certeza de qualquer fato sequer, a única certeza possível é aquilo que é dito pelo Grande Irmão. A cada instante, notícias novas surgem para substituir as antigas. O passado é tão dinâmico quanto o presente e isso representa um grande problema, pois um povo sem passado é um povo órfão. Não existe mais nenhuma tradição, nenhuma história, nenhum vínculo com a ancestralidade: tudo o que existe agora é o Partido; vive-se para o Partido.

Entretanto, em determinado momento do romance, surge em Winston um certo desconforto em relação a isso. Ele começa a querer saber como era o mundo pré-revolução, se era melhor ou pior que o atual. Afinal de contas, tinha aprendido que antes da Revolução o mundo era dominado por gente muito má que pertencia a classes superiores e oprimia as classes mais baixas da sociedade. "Os capitalistas eram donos de tudo que havia no mundo e todos os outros homens eram seus escravos. [...]. Haveria menção sobre bispos [...], juízes [...] e a prática de beijar o pé do papa.". Não é preciso ir muito longe para notar que a destruição revolucionária se dirigia aos três pilares da civilização ocidental: o capitalismo, a religião e as instituições de direito.

Em sua busca por descobrir como de fato era o passado, Winston se vê caminhando em direção ao bairro dos proleta ("proletários" em Novafala), na volta pra casa após o expediente. E, depois de muito perseguir sem obter êxito, encontra uma lojinha de antiguidades familiar. Era onde havia comprado seu diário há muito tempo. Ele, enfim, se depara com o conhecido que havia se tornado esquecido.

Ao entrar na lojinha, é atendido por um vendedor aparentemente idoso. Seu nome era sr. Charrington e morava ali também. O interesse de Winston em conhecer mais sobre o passado foi percebido pelo vendedor que iniciou um diálogo com ele.

Logo em seguida, o olhar de Winston fora atraído por um objeto de vidro, "que brilhava suavemente à luz do lampião", que até então nunca vira: um peso de papel semi-hemisférico que continha um coral cor-de-rosa em seu interior. Ficara fascinado; aquilo representava seu encontro com o belo. "É bonito" - afirmou. Ele não estava habituado a esse tipo de arte, nem à experiência estética do belo, afinal, toda arte existente era ideológica: servia ao Grande Irmão, como tudo.

Comprou o objeto, muito mais seduzido por ser uma antiguidade do que por sua beleza, enfiou-o no bolso a fim de escondê-lo porque tudo que era antigo e, no limite, belo, causava suspeitas na Polícia das Ideias. 

Papo vai, papo vem, o sr. Charrington o convida para subir o andar de cima, onde continha uma salinha com mais antiquarias. Era um cômodo que tinha uma lareira, uma poltrona, um relógio de vidro antigo, uma cama grande e dois quadros: um ambiente acolhedor. 

O vendedor mostrou uma das gravuras na parede a Winston. Era uma antiga igreja, São Clemente dos Dinamarqueses, que atualmente estava em ruínas devido a um bombardeio. Prosseguindo, sr. Charrington tenta se lembrar de uma antiga quadrinha popular que era cantada e dançada, tipo aquelas músicas de festas juninas, que reunia os nomes das principais igrejas locais.

A curiosidade de Winston aumentara a tal ponto que ele queria saber onde ficavam as demais igrejas. Era impossível reconhecê-las pela arquitetura, pois tudo fora alterado pelo Partido. Mas, à medida em que conversavam, a quadrinha não saía de sua mente. Cantarolava internamente a ponto de sentir que ouvia os sinos das igrejas:


Sem casca nem semente, dizem os sinos da
São Clemente,
Esses vinténs são pra mim, cantam os sinos da 
São Martim...


Finalmente, o lema assustador e marcante do Grande Irmão fora substituído pela canção popular, isto é, aquilo que é sagrado fora reestabelecido.

A natureza humana de Winston se fazia presente. Era restituída. Seu contato com o passado, sua experiência do belo e seu conhecimento sobre um tempo em que pessoas cantavam e dançavam alegres, onde não existia um controle terrível sobre o pensamento e sentimentos, fazia surgir nele esperança. Esperança de que o mundo voltasse a ser como era antes, ou, pelo menos, em que a liberdade fosse restaurada. Em outras palavras, um mundo em que não houvesse mais o Grande Irmão.

Entretanto, algo aconteceria com Winston que faria ele desistir de tudo isso.


Continua...








terça-feira, 23 de junho de 2020

A iniciação do Sr. Bolseiro




"Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca nojenta, suja, úmida, cheia de pontas de minhocas e um cheiro de limo, nem tampouco uma toca seca, vazia, arenosa, sem nenhum lugar onde se sentar ou onde comer: era uma toca de hobbit, e isso significa conforto." 

- J. R. R. Tolkien



"O Hobbit", escrito por J. R. R. Tolkien, conta a história de uma criaturinha pequena (menor que um anão) com pés grandes e peludos que adora o conforto, a comida boa, o sossego de uma tarde tranquila com seu charuto espalhando no ar anéis de fumaça e que é chamada para uma grande jornada, onde terá que lutar contra trols, gobelins, wargs e, finalmente, o terrível Smaug, o Dragão. Apesar da aparente simplicidade que o livro carrega, a história de nosso querido Sr. Bilbo Bolseiro nos traz valiosas lições espirituais e descreve um rito iniciático básico de todo aquele que se predispõe a "nascer de novo". 

Como todo Hobbit, Bilbo vive num vilarejo muito bonito, aconchegante e afastado dos perigos do mundo. Leva sua vida tranquilamente sem muitas aventuras até que surge a figura do sábio - ou do mestre -, representado por Gandalf, o Cinzento, e o convoca para uma jornada muito perigosa: recuperar um tesouro perdido que está sendo protegido por um grande mal, Smaug. 

Aqui já vemos elementos importantes de uma estrutura iniciática: a alma que vive em seu mundo fechado em si mesmo (isso é o que representa o Condado), que não possui uma visão da totalidade da Realidade (incluindo seus perigos), vê-se chamada para uma jornada onde terá que abrir mão de tudo aquilo que lhe é caro. Mas essa jornada representa a ascese da alma na busca daquilo que é mais sagrado, sendo representado aqui pelo grande tesouro.

É natural nos mitos iniciáticos essa estrutura, mudando apenas a representação desses elementos. Por exemplo, temos a mesma estrutura nos mitos órficos, quando Orfeu desce ao Hades para resgatar sua amada, ou quando Cristo desce à mansão dos mortos e ressurge ao terceiro dia. Essa eucatástrofe ocorre em quase todo rito de iniciação. 

Entretanto, Bilbo só consegue vencer a inércia inicial e ganhar a motivação necessária para começar a empreitada por que ele é descendente dos Tûk, um ramo de sua linhagem que contém os Hobbits aventureiros. Ora, o que significa esse lado Tûk de Bilbo senão a parte mais elevada de nossa alma, que sempre nos lembra que temos que fazer nossa ascese? 

Mais uma vez, a simbologia disso se encontra nos demais mitos sagrados. No hinduísmo, por exemplo, podemos dizer que o lado Tûk representa o atman - ou o Eu superior. No cristianismo, Jesus nos conta que o Reino de Deus está em nós. Tudo isso para mostrar-nos que a ascensão da alma para o sagrado só é possível porque ela já carrega em si a presença de Deus.

A jornada nos leva a busca desse tesouro precioso mas é preciso derrotar ainda o Dragão, ou seja, o puro mal. Não é preciso ir muito além para perceber que Smaug representa os aspectos mais baixos da alma, e por isso deve ser derrotado.

Ao final de tudo, a eucatástrofe está completa: Bilbo, que mergulhou fundo nas trevas ressurge um novo homem (ops, um novo Hobbit). Ele retorna para seu lar, porém nunca mais será o mesmo, pois ele contemplou a verdade fora do estreito círculo do si mesmo.

Mas, não devemos esquecer que isso tudo só foi possível por que existe uma Providência Divina que esteve ao lado do Sr. Bolseiro todo o momento. Nas palavras de Gandalf: "Você não supõe que todas as suas aventuras e escapadas foram guiadas por mera sorte, só para seu próprio benefício, supõe?"

O elemento da Providência surge aqui para dizer que todo nosso processo de ascese depende, em última instância, da vontade Divina. "Os seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, dizendo: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível." (Mt, 19, 25-26)