quarta-feira, 22 de junho de 2016

Conversando sobre Deus: um diálogo entre Anselmo e Descartes




"Eia, vamos homem! Foge por um pouco às tuas ocupações, esconde-te dos teus pensamentos tumultuados, afasta as tuas graves preocupações e deixa de lado as tuas trabalhosas inquietudes. Busca, por um momento, a Deus, e descansa um pouco nele. Entra no esconderijo da tua mente, aparta-te de tudo, exceto de Deus e daquilo que pode levar-te a ele, e, fechada a porta, procura-o."

- Santo Anselmo in Proslógio, cap. I


“E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito ao menos tão certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas (...)”

- René Descartes in Meditações Metafísicas, quinta meditação.




O argumento ontológico de Santo Anselmo do “ser do qual não se pode pensar nada maior”, usado para demonstrar a existência de Deus, provavelmente influenciou René Descartes à provar igualmente a existência de um ser “soberanamente perfeito”. A similaridade de ambos argumentos é notável, ainda mais quando percebe-se que estes são totalmente a priori. Embora o foco metódico de cada autor seja diferente, parece que este é um caso onde as diferenças não importam muito pois, tanto o argumento anselmiano quanto o cartesiano giram em torno da pura análise do conceito de Deus.

Para uma breve apresentação dos autores, Anselmo – um agostiniano do século XI – é requisitado pelos seus irmãos monges a fornecer um argumento puramente racional que demonstre a existência de Deus. Após inúmeras reflexões, que o fizeram pensar num único argumento válido por si e em si, sem nenhum outro, Anselmo escreve seu Proslógio onde se encontra seu famoso argumento ontológico. Ressalta-se que não se trata de fundar a fé na razão mas, antes, fornecer fundamentos racionais para o que já se crê, tornando o conteúdo da Revelação inteligível.

René Descartes, físico, filósofo e matemático do século XVII, escreve suas Meditações Metafísicas com o intuito de obter ideias claras e distintas, as quais não se pode duvidar. Para encontrá-las, ele adota uma dúvida metódica que consiste em dar como falso qualquer evento que mostre a menor dúvida. Logo no início de sua primeira meditação ele admite como falso todas as opiniões que até então aprendera. Em outras palavras, tudo aquilo que o foi ensinado – filosofia e ciências medievais. Sua proposta é partir do zero.


Já de antemão pode-se perceber a diferença de abordagens que os dois autores possuem. Um é o monge agostiniano que coloca a razão como serva da teologia revelada; outro, negando todas as opiniões que se mostrarem minimamente duvidosas. Contudo, essas diferenças parecem que somem quando ambos demonstram a existência de Deus.

No capítulo II de seu Proslógio, Anselmo define o conceito de Deus como sendo o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. À primeira vista esta definição não diz nada a respeito da existência de Deus, contudo, ao analisá-la cautelosamente se torna impossível dizer como o incrédulo: “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe” (Sl 13,1).


Geralmente, o conceito de algo não implica em sua existência. Por exemplo, pode-se pensar num “unicórnio”. Pode-se, inclusive, pensá-lo como existente. Todavia, não existe nada em seu conceito que force sua real existência. Em suma, não há contradição lógica no fato do unicórnio não existir. 

Coisa bem diferente acontece com o conceito de Deus. Pois, se o “ser do qual não se pode pensar nada maior” só existir na mente de quem o pensa, faltar-lhe-ia uma perfeição que é a existência extra mentis e, portanto, deixaria de ser o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. 

Toda a questão gira em torno de duas possibilidades: ou o “ser do qual não se pode pensar nada maior” só existe na mente de quem pensa; ou, existe também fora. Silogismo disjuntivo simples: 

A v B 

~B 

:. A 


O que distingue quaisquer dois seres é o fato de um possuir uma ou mais propriedades que o outro não têm. Se o “ser do qual não se pode pensar nada maior” não possuir a propriedade de existir extra mentis, então ele será limitado e, poder-se-ia continuar pensando em outro ser do mesmo tipo que exista extra mentis. Logo, se ele é limitado, deixa de ser o “ser do qual não se pensar nada maior”, o que é uma contradição. Por isso, é necessário – logicamente falando – que o “ser do qual não se pode pensar nada maior” exista também fora da mente de quem pensa, pois ele não pode ser privado de qualquer perfeição, senão deixaria de ser o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. 

Pode-se dizer que o conceito de Deus é o único conceito que implica na existência do conceituado. É necessário que seja assim, caso contrário existiria uma contradição interna do próprio conceito. E é seguindo esta lógica que Descartes também demonstrará a existência de Deus na quinta meditação.

Após já ter estabelecido seu critério de verdade nas meditações anteriores, Descartes passa a considerar o que ele sabe clara e distintamente de uma série de ideias. Mesmo que ainda não possa afirmar que algo exista fora da res cogitans, cada ideia possui sua forma, sua natureza, que Descartes irá analisar. 

Quando se pensa num triângulo, sabe-se, clara e distintamente, que é um polígono de três lados. Ainda que ele não exista fora de mim, sua natureza é distinta e indubitável, mesmo que seja na qualidade de um objeto meramente possível. 

Sem dúvida, pode-se passar a vida inteira sem jamais pensar na ideia de um triângulo. Contudo, o que Descartes enfatiza é o fato de que a partir do momento em que se concebe clara e distintamente sua ideia, não se pode atribuir nada à ela que a contradiga. Isto é, não se pode mudar sua definição como, por exemplo, dizer que um triângulo é um quadrado de três lados. Isto porque a natureza de tal objeto não é decidida pelos homens como uma convenção. Ela é absolutamente eterna e imutável e, isto, significa conhecer algo clara e distintamente. 

Por ser a natureza da ideia independente, pode-se conhecer sua exata definição – “triângulo é um polígono de três lados” – contudo, não é tudo que se pode derivar daí. Ele possui propriedades que só se descobre posteriormente – por exemplo, que a soma de seus ângulos internos é sempre 180 graus – mas que só são descobertas porque o triângulo é o que é. Em suma, pode-se demonstrar que tais propriedades se seguem da natureza das ideias. 

Se isto é verdade para as ideias geométricas e matemáticas, também para Deus aplica-se o mesmo raciocínio. Isto é, buscar as propriedades que se seguem da natureza de sua ideia. É aqui que a semelhança do argumento anselmiano surge. Pois, se se sabe que estas propriedades derivadas do conceito são necessárias, e se sabe-se que Deus é um ser soberanamente perfeito – como diz Descartes – Sua existência também é necessária. 

Um ser soberanamente perfeito e ilimitado não pode ser privado de existência, caso contrário faltar-lhe-ia algo. Ele deve existir necessariamente assim como a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus ou assim como uma montanha sempre vem acompanhada de um vale (como diz Descartes). Dizer o contrário é contradizer a natureza da ideia de Deus. 

Invocando a distinção escolástica entre essência e existência, Descartes afirma que essas qualidades não podem ser separadas em Deus. Pois, de novo, dizemos que a concepção de algo não implica em sua existência – o exemplo do unicórnio acima ainda é válido. Contudo, conceber um Deus (um ser soberanamente perfeito) não-existente é o mesmo que conceber um triângulo quadrado. Em Deus, essência e existência estão inextricavelmente associadas. 

A existência de Deus é um fato mesmo que eu não pense atualmente em Seu conceito. Assim como uma pessoa pode passar a vida toda sem nunca pensar num quadrado, seu conceito existe de forma independente. Mas, a partir do momento em que se concebe a ideia de um ser soberanamente perfeito, se torna uma questão de tempo para descobrir as propriedades inerentes a ele – neste caso, sua existência extra mentis. 

Parece que esse argumento é tão certo e indubitável que se pode pensar nele mesmo sem ter lido as meditações anteriores. Com efeito, “E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito ao menos tão certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas (...)”

Existe, de fato, muita semelhança entre os dois argumentos citados acima. Os dois giram em torno da questão: se Deus é perfeito, então não se lhe pode faltar nada, nem a existência. Se ambos fossem escritos na mesma época, poder-se-ia conjecturar que era um pensamento quase comum aos seus contemporâneos. Contudo, a diferença de séculos é notável; Anselmo século XI, Descartes, XVII. 

Por mais que a intenção cartesiana tenha sido a de construir seu sistema filosófico partindo do zero, Descartes não obteve sucesso. Percebe-se uma forte influência medieval em suas Meditações, como por exemplo seu cogito[1] que, de algum modo, estava presente em Agostinho; o princípio escolástico de proporcionalidade entre causa e efeito, presente em sua terceira meditação para provar a existência de Deus; o conceito de luz natural, também medieval; a distinção tomista entre essência e existência, sendo que em Deus ela não existe; e o argumento ontológico de Anselmo. 

Além disso, o próprio estilo literário das Meditações é o mesmo que do Proslógio – ambos são meditações. Ambos argumentos são a priori e possuem como ponto de partida a mesma abordagem conceitual: um diz que Deus é o “ser do qual nada se pode pensar maior”, outro diz que Ele é “soberanamente perfeito”, e por isso, Sua existência é necessária, caso contrário há uma contradição. 

Há quem diga que, embora os argumentos sejam parecidos eles estão situados em contextos diferentes. É justa a observação, contudo, um olhar minucioso para a quinta meditação dirá que o argumento cartesiano está um pouco descolado do resto das meditações. O próprio autor afirma – na passagem citada acima – que se tudo dito até o momento não convenceu, isto então convencerá – e lança o argumento ontológico de Anselmo. O que nos leva a pensar tal demonstração cartesiana como uma reformulação do argumento do monge medieval. 



[1] Este ensaio não tem a pretensão de dizer que Descartes plagiou os medievais. Somente está sendo exposto aqui que o projeto cartesiano não partiu do zero, tendo mais influências do medievo do que como se diz costumeiramente. 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O problema de Mênon e a teoria da reminiscência de Platão.


"E de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes absolutamente o que é? Pois procurarás propondo-te <procurar> que tipo de coisa, entre as coisas que não conheces? Ou, ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que isso <que encontraste> é aquilo que não conhecias?"

- aporia sofística expressa pelo jovem Mênon.

Inicialmente, o diálogo platônico Mênon começa com uma pergunta aparentemente simples: "A virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém aos homens por natureza ou por outra maneira?"[1]. Entretanto, ao fazer tal pergunta, o jovem tessálio - discípulo do famoso sofista Górgias - assume que já sabe o que é virtude. Para ele, que já proferiu inúmeros discursos sobre ela[2], isso era evidente.

Sócrates porém, não se sente apto a responder a questão inicial pois antes precisa saber qual é a definição de virtude. Por isso, reformula a questão à Mênon, com intuito de, sabendo o que seja a virtude, poder responder se ela é ou não passível de ser ensinada. Contudo, a primeira resposta dada por Mênon[3] não agrada o filósofo, pois listar as virtudes não significa defini-la[4]. E é justamente aí que reside a crítica socrática.

Em sua segunda tentativa[5], Mênon procura definir virtude em geral, contudo ele não respeita a multiplicidade do definiedum[6] e confunde suas espécies com a própria coisa em si[7]. Em outras palavras, dizer que justiça é virtude não significa dizer que é a virtude. Mas o discípulo de Górgias continua tentando achar uma reposta que satisfaça Sócrates.

Na última tentativa de responder Sócrates, cita-se um verso de uma poesia antiga: "regozijar-se com as coisas belas e poder alcançá-las"[8]. Entretanto, o protagonista platônico convence o jovem de que a única diferença entre virtuosos e não virtuosos seria a capacidade de conseguir as coisas belas, tendo em vista que todos querem coisas boas para si[9]. E, numa segunda crítica à esta reposta, Sócrates consegue argumentar que sem justiça, conseguir essas coisas boas não seria virtude e, sendo virtude quando alcançadas com justiça, volta-se ao problema inicial: a justiça é uma virtude e não a virtude.

Mênon entra em aporia - citada acima. De alguma forma, Sócrates mostra ao jovem que nem saber o que é virtude ele sabia. Todavia, a aporia só surge porque o próprio filósofo também não sabe definir o que é virtude[10].

Para tentar encontrar uma solução para o impasse sofista acima, Sócrates lançará mão de uma ideia nova: o aprendizado por rememoração; conhecimento como reconhecimento. Invocando a confiabilidade nas palavras dos homens sábios em coisas divinas, o filósofo argumenta que a alma é imortal e já nasceu muitas vezes, tendo portanto, visto todas as coisas, tanto aqui, como no Hades. Pelo fato da natureza ser congênere, não há uma só coisa que a alma não tenha contemplado, de modo que tendo rememorado algo, nada impede dela rememorar outra coisa. Conclui-se que, tanto o aprender e o procurar são rememorações.

Logo depois, Sócrates chama um escravo de Mênon para demonstrar sua tese. A demonstração consiste em fazer com que o escravo - que nunca aprendera matemática na vida - por si só, fizesse dobrar a área de um quadrado usando apenas geometria. Ao final da demonstração, o discípulo de Górgias parece aceitar a imortalidade da alma como uma possível saída da aporia inicial. Entretanto, algumas considerações devem ser feitas quando se aceita uma tese desse tipo.

Se a reminiscência platônica for verdadeira, o conceito de ensino-aprendizagem muda radicalmente. Seja qualquer tipo de conhecimento, ninguém nunca poderá ensinar-nos nada. O máximo que pode acontecer é o mestre apontar o caminho para a lembrança de tal ideia (aqui, no sentido platônico), para o aluno. Este, por sua vez, deverá se esforçar para superar as aporias intermediárias até chegar ao conhecimento da coisa em si.

Talvez, o diálogo Mênon não termine com uma resposta definitiva pelo fato de que ainda existe uma certa ambiguidade no conceito de aprendizagem[11]. Se a teoria platônica fosse hegemonicamente aceita em sua época, certamente essa dubiedade não existiria, e poder-se-ia concluir que a virtude não é coisa a ser ensinada, mas rememorada. Como consequência disto, uma outra pergunta surge naturalmente: como rememorá-la? Será uma dádiva dos deuses? Um esforço único da alma? Um mestre que aponte (e não ensine) o caminho para a virtude? Ou uma mistura dessas coisas?



[1] Mên., 70a.
[2] Id., 80b.
[3] Ibid., 71e.
[4] Ibid., 72b.
[5] ibid., 73d.
[6] ibid., 73d.
[7] ibid., 73e.
[8] ibid., 77b.
[9] ibid., 77d-78c.
[10] ibid., 80d.
[11] Ambiguidade expressa por Mênon, quando no final de 81e pergunta para Sócrates se este poderia lhe ensinar sobre a reminiscência. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Estrelando Feyerabend no Vale-Tudo: uma filosofia da ciência anárquica.


"Isto é demonstrado [o anarquismo epistemológico] tanto por um exame de episódios históricos quanto por uma análise abstrata da relação entre ideia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale.

- P. Feyerabend em  "Contra o Método", ed. Unesp, 2011.



Em 1975, o filósofo e físico Paul Feyerabend publica seu famoso livro Contra o Método onde defende ideias sobre um anarquismo epistemológico como resultado de uma análise histórica da ciência. Também disserta exaustivamente sobre os impactos culturais que se desdobram numa sociedade onde uma tradição específica se pretenda ter um caráter universal. Pode-se destacar cinco ideias centrais do autor:

1) não pressupunha mais fronteiras entre ciência e outros discursos;
2) desconsiderava a importância de uma metodologia universal;
3) não garantia mais a superioridade desta;
4) não a tornava um conhecimento verdadeiro ou mais próximo da verdade e, finalmente
5) duvida do pressuposto de que um mundo regido por uma única concepção (considerada a melhor), científica ou não, é necessariamente um mundo melhor para se viver.[1]


Anarquismo epistemológico
Feyerabend inicia seu livro Contra o Método com a afirmação de que a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico (FEYERABEND, 2011, p. 31). Para o filósofo, tal ideia surge devido à análise histórica da ciência, onde volta e meia os cientistas burlaram (em algum grau) as prescrições epistemo-metodológicas para fazê-la avançar. Tal conduta impele o progresso científico sempre para frente, gerando novas discussões e descobertas.

Contrapondo-se aos ideias racionalistas - como os de karl Popper, por exemplo -  que procuram fixar a ciência num corpo rígido de regras universais e invioláveis, Feyerabend aponta para as irregularidades que o cientista comete durante sua prática, possibilitando assim o progresso científico. Tal ideal de enquadrar a ciência nesses moldes, segundo nosso filósofo, se deve à ausência da análise dos fatores culturais, sociais, políticos, etc., que permeiam a atividade do cientista.

"A educação científica tal como hoje a compreendemos tem precisamente esse objetivo. Simplifica a 'ciência' pela simplificação de seus participantes: primeiro, defini-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história (a física, por exemplo, é separada da metafísica e da teologia) e recebe uma 'lógica' própria. Um treinamento completo em tal 'lógica' condiciona então aqueles que trabalham nesse campo; torna suas ações mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico. Fatos 'estáveis' surgem e mantém-se a despeito das vicissitudes da história."[2]

Dando continuidade à crítica aos filósofos que buscam prescrever uma metodologia científica, Feyerabend questiona se é preferível dar apoio a tal visão de ciência, visto que de acordo com ela, tal tradição (a ciência) ganharia autoridade dentro da sociedade pelo fato de parecer ser um padrão objetivo - e, portanto, universal - de medida e isenta de fatores humanos. "E minha resposta, a essas perguntas, será um firme e sonoro NÃO" (FEYERABEND, p. 34).

Para justificar essa reposta, ele fornece duas razão. A primeira é concernente ao fato de que o mundo é um grande desconhecido e, por isso, qualquer tentativa de impor regras fixas para conhecê-lo terá um grande fracasso como resultado.  As regras só surgem depois de algo descoberto, ou seja, diz respeito a fatos do passado que já ficaram mais que conhecidos. Se o cientista quiser buscar algo de novo, velhas prescrições dificilmente o ajudarão nessa empreitada.

"Prescrições epistemológicas podem parecer esplêndidas quando comparadas com outras prescrições epistemológicas ou com princípios gerais - mas quem pode garantir que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos 'fatos' isolados, mas também alguns profundos segredos da natureza?"[3]

A segunda razão diz respeito a liberdade do ser humano em criar e poder escolher suas próprias "regras" para uma vida feliz. Feyerabend se preocupa muito com essa questão, tornando-a o centro de seus argumentos. Para ele, atacar a ideia de que existam padrões universais - gerando assim, tradições rígidas - é importante, pois isso permitirá ao cientista uma total liberdade na elaboração de suas teorias e experimentos. 

 O princípio tudo vale
Como dito anteriormente, a história da ciência impõe dificuldades na elaboração de regras rígidas, imutáveis e obrigatórias na hora de traçar uma diretriz para a ciência. Não houve sequer uma regra que não tenha sido violada pelos cientistas, e tal violação nem sempre foi resultado de algum tipo de desatenção, mas foi decididamente quebrada. Feyerabend cita exemplos históricos como o atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, a emergência gradual da teoria ondulatória da luz, dizendo que "ocorreram apenas porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas 'óbvias', ou porque as violaram inadvertidamente." (ibidem, p. 37).

Conclui de maneira categórica que isso não é apenas um fato da história, mas é absolutamente necessário que assim ocorra para não inibir o desenvolvimento do conhecimento. Então, hipótese ad hoc, hipóteses que contradigam resultados experimentais bem estabelecidos, hipóteses inconsistentes, etc., serão sempre bem-vindas na prática científica.

Por exemplo, pode-se fazer avançar a ciência procedendo contraindutivamente. Ao contrário do empirismo, cuja essência é a regra que diz que "fatos" e "resultados experimentais" medem o êxito das teorias científicas, a contraregra aconselha-nos "introduzir e elaborar hipóteses que sejam inconsistentes com teorias bem estabelecidas e/ou fatos bem estabelecidos" (ibid., p. 43). Em outras palavras, aconselha-nos a proceder contraindutivamente.

Contudo, uma pergunta surge naturalmente: "é a contraindução mais razoável do que a indução?"(ibid., p. 43). Essa pergunta será respondida em duas etapas. A primeira consiste em examinar a contraregra que incita o desenvolvimento de hipóteses inconsistentes com teorias bem aceitas e confirmadas, e a segunda que incita a proliferação de hipóteses inconsistentes com "resultados experimentais" bem estabelecidos.

Na primeira etapa, uma evidência potencialmente refutadora de uma teoria bem estabelecida só aparece quando comparada com uma alternativa incompatível.  Feyerabend argumenta que algumas importantes propriedades formais de uma teoria são descobertas por contraste, não por análise (ibid., p. 44). Então, se um cientista quer testar o alcance do conteúdo empírico de sua teoria, ele deve adotar uma metodologia pluralista.

Aqui aparece pela primeira vez a expressão "pluralismo metodológico". Tal expressão é importante pois ela é o sinônimo menos polêmico do princípio tudo vale. Ao pronunciar desta forma, Feyerabend quer dizer que sua filosofia não comporta um relativismo ingênuo e, portanto, prejudicial. Ele nunca promoveu uma rejeição de regras. Contudo, ao criticar as exigências de uma possível "regra universal", ele se preocupou em oferecer liberdade total ao cientista - coisa que seria impossível, caso regras universais fossem impostas. Vê-se que o princípio tudo vale não passa de um pluralismo metodológico benéfico à prática científica e o único meio de não inibir o progresso da ciência. Nas palavras dele:

"Minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto da mesma espécie: minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de algumas regras que ela ou ele tenderia a considerar básicas. No caso da indução (inclusive a indução por falseamento), isso significa demonstrar quão bem o procedimento contraindutivo pode ser apoiado por argumentação. Recorde-se, sempre, que as demonstrações e a retórica empregadas não expressam nenhuma "convicção profunda" de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil é fazer, de maneira racional, que alguém nos siga cegamente. Um anarquista é como um agente secreto que participa do jogo da Razão de modo que solape a autoridade da Razão."[4]

Na segunda parte da resposta à questão inicial, Feyerabend argumenta que não é preciso uma defesa especial da tese. Retomando uma ideia bem defendida por certos filósofos da ciência - incluindo Popper -, sobre a anterioridade da teoria em relação aos fatos, nosso filósofo não está mais interessado em saber se tais hipóteses inconsistentes aos resultados experimentais são ou não bem-vindas, mas se as discrepâncias entre teoria e fato devem ser aumentadas ou diminuídas.

Todavia, se admite-se que os fatos só passam a ser observados, em seus próprios termos, por causa de uma teoria prévia - teoria esta, que muitas vezes é inconsciente -, como elaborar tais hipóteses que contradigam fatos "observáveis"?

"A resposta é clara: não podemos descobri-lo a partir de dentro. Necessitamos de um padrão externo de crítica, necessitamos de um conjunto de pressupostos alternativos, ou, já que esses pressupostos serão bastante gerais, constituindo, por assim dizer, um mundo alternativo inteiro, necessitamos de um mundo imaginário a fim de descobrir as características do mundo real que pensamos habitar (e o qual, na verdade, talvez seja apenas outro mundo imaginário)."[5]

Em outras palavras, como os termos que descrevem os fatos observáveis de uma teoria são próprios dela, é necessário criar um outro sistema de conceitos - que por sua vez trará um conjunto de novos termos (mesmo que a palavra seja a mesma em ambas as teorias, seu significado pode mudar substancialmente) - a fim de comparar tais sistemas teóricos e dar continuidade ao processo contraindutivo.

Para exemplificar essas considerações, Feyerabend analisa o caso de Galileu em sua luta contra os aristotélicos de sua época. Galileu teria mudado as regras do jogo de linguagem[6] dos aristotélicos, onde estas tivessem dificuldade em sua aplicação, para defender o ponto de vista copernicano. Uma dessas mudanças (sutilmente ardilosas), foi substituir o significado da palavra "movimento"[7] para um deslocamento geométrico espaço-temporal, ao invés de ser uma passagem de potência para ato, ou em se tratando da queda dos corpos, como sendo a "tendência para ocupar seu lugar natural".

Também para Galileu, a observação não é mais a evidência imediata, mas uma evidência a ser julgada pelo raciocínio. Como por exemplo o movimento da Terra que, para uma observação empírica imediata, claramente não existe, sendo o Sol a mover-se em torna dela. Como uma semelhança de familía[8], Galileu reinterpreta fatos conhecidos pelos aristotélicos e os introduz em seu novo jogo de linguagem. O que corrobora com a contraregra que insiste na elaboração de hipóteses que contrastem com os fatos bem estabelecidos.

Se a contraindução proporciona o avanço científico, então a condição de consistência de uma teoria é uma opção desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga, e não a melhor. Esta condição exige que hipóteses novas sejam consistentes com as tais teorias.

"Hipóteses contradizendo teorias bem confirmadas proporcionam-nos evidência que não pode ser obtida de nenhuma outra maneira. A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade prejudica seu poder crítico. A uniformidade também ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo."[9]

Para encerrar a defesa da contraindução, Feyerabend argumenta que não há uma única ideia no passado, por mais antiga e absurda que possa parecer, que não seja capaz de aperfeiçoar a ciência. De tal maneira que "toda a história do pensamento é absorvida na ciência e utilizada para o aperfeiçoamento de cada teoria" (id., p. 59).

Essa visão integradora entre ciência e história é de suma importância para a filosofia da ciência. De fato, se a contraindução estiver correta, os cientistas podem pinçar qualquer teoria - desde os mitos antigos até os preconceitos modernos - para promover um progresso científico. E aqui, chega-se nas consequências últimas de se levar em conta o papel da história na ciência:

 "A separação entre a história de uma ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolve-se no ar, e isso também se dá com a separação entre ciência e não ciência."(ibid., p.60).



[1]  ARAÚJO P. S., Feyerabend e o pluralismo, Perspectivas contemporâneas em filosofia da ciência, 2012, p. 132.
[2] FEYERABEND, 2011, p. 33-34.
[3] id., p. 34.
[4] ibid., p. 47.
[5] ibid., p. 46.
[6] item 7 de Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
[7] Para resumir, "movimento" siginifica a redução de potência para ato. É uma abordagem qualitativa, e não meramente quantitativa, como queria Galileu.
[8] item 67 de  Investigações Filosóficas.
[9] FEYERABEND, p. 49.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Sherlock Holmes e o raciocínio dedutivo




"De uma gota d'água, (...), um lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou um Niágora, sem ter visto ou ouvido falar de qualquer dos dois."

 - trecho de um artigo escrito por Sherlock Holmes in "Um estudo em vermelho"



"Holmes" é o personagem mais famoso do escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle. Tal personagem ganhou fama entre seus leitores por ser um detetive diferente. Sendo extremamente observador e portador de uma extraordinária memória, Sherlock conseguia juntar os detalhes - muitas vezes detalhes "desprezíveis"- da cena do crime, aglutiná-los e formular uma hipótese que muitas vezes era corroborada com os fatos posteriores.

Muito influenciado pelo conceito de ciência de sua época, sir Conan Doyle faz algumas asserções bem típicas dos empiristas mais radicais. Inúmeras vezes em seu livro, o protagonista repreende seu fiel companheiro Watson alertando-o que não se deve formular teorias antes dos fatos. Os fatos falam por si mesmos e só depois de os analisar é que deve-se estipular as teorias.

É preciso dizer que tal postura filosófica será alvo de inúmeras críticas - principalmente no século XX - pelos filósofos da ciência. Mas, deixando esse assunto um pouco de lado, podemos já traçar um equívoco lógico do pensamento de Holmes.

Quem leu os livros ou acompanhou as inúmeras séries de televisão, com certeza se deparou com os capítulos que Holmes ensinava Watson sobre seu método. Nos livros, geralmente aparece um capítulo chamado "Ciência dedutiva", indicando que o raciocinar do protagonista provinha da Lógica.

Infelizmente, esse pensamento é errado. Na Lógica - que pode ser sinônimo de raciocínio dedutivo -, a conclusão se segue tautologicamente do conjunto de premissas. Isto equivale a dizer que já nas premissas a conclusão está presente. Um exemplo mais que batido de um raciocínio lógico-dedutivo é:

A: Todos os homens são mortais
B: Sócrates é homem
C:. Sócrates é mortal

Como pode-se ver, a conclusão já estava contida nas premissas, bastando que esta fosse reorganizada e posta na terceira linha do argumento.

Sem entrar em detalhes mais específicos da Lógica formal, a própria ordem das sentenças altera a validade do argumento - isto é, se o argumento permanece válido ou não. No exemplo anterior, trocando a ordem de B com C vemos que a conclusão não se segue das premissas (o fato de Sócrates ser mortal não significa que ele seja homem).

Assim, surge então a pergunta: qual o tipo de raciocínio de nosso querido detetive? A resposta é um raciocínio abdutivo.

Um argumento abdutivo se caracteriza por ser a melhor explicação possível. Então, por exemplo, se eu vejo a calçada molhada, num dia de sol, uma mangueira próxima à ela e uma velhinha varrendo as folhas para a rua, eu infiro que a velhinha estava lavando a calçada e que a molhou com sua mangueira. E é exatamente isto que nosso Holmes faz! Ao analisar cuidadosamente os detalhes da cena do crime, ele junta as peças do quebra-cabeças e tira uma conclusão que seria a melhor explicação possível naquele momento.

Todavia, o que o nosso querido Sherlock não sabe, é que num raciocínio abdutivo a conclusão não se segue tautologicamente das premissas. Isto se torna um grande problema quando se tem todas as premissas verdadeiras e infere-se a melhor explicação possível, mas esta não é verdadeira factualmente. Para visualizar a problemática deste tipo de pensamento, imagine a seguinte situação:

"Um homem está ao lado de um cadáver que morreu recentemente - os dois estão sozinhos dentro da cozinha do falecido. Com sangue em suas mãos observa-se que ele segura uma faca. Sabe-se também que este mesmo homem era inimigo do falecido."

A melhor explicação que vem em nossas mentes é a de que o homem matou seu rival e foi pego em flagrante. Contudo, o que aconteceu de fato foi que seu rival teve um ataque epilético quando cortava cebola para o jantar. Ao avistar seu vizinho rival sofrendo, por um impulso nobre de sua parte, o homem correu para ajudá-lo... mas era tarde demais.

Como podemos ver, justamente porque as premissas não garantem a verdade tautológica da conclusão, o raciocínio abdutivo se torna extremamente problemático.

Mas será que isso não era tão elementar assim, meu caro Holmes?