"Isto é demonstrado [o anarquismo epistemológico] tanto por um exame de episódios históricos quanto por uma análise abstrata da relação entre ideia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale.
- P. Feyerabend em "Contra o Método", ed. Unesp, 2011.
Em 1975, o filósofo e físico Paul Feyerabend publica seu
famoso livro Contra o Método onde defende ideias sobre um anarquismo epistemológico como resultado de uma análise
histórica da ciência. Também disserta exaustivamente sobre os impactos
culturais que se desdobram numa sociedade onde uma tradição específica se
pretenda ter um caráter universal. Pode-se destacar cinco ideias centrais do autor:
1) não pressupunha
mais fronteiras entre ciência e outros discursos;
2) desconsiderava
a importância de uma metodologia universal;
3) não garantia
mais a superioridade desta;
4) não a tornava
um conhecimento verdadeiro ou mais próximo da verdade e, finalmente
5) duvida do
pressuposto de que um mundo regido por uma única concepção (considerada a
melhor), científica ou não, é necessariamente um mundo melhor para se viver.[1]
Anarquismo epistemológico
Feyerabend inicia seu livro Contra o Método com a afirmação de que a ciência é um
empreendimento essencialmente anárquico (FEYERABEND, 2011, p. 31). Para o
filósofo, tal ideia surge devido à análise histórica da ciência, onde volta e
meia os cientistas burlaram (em algum grau) as prescrições
epistemo-metodológicas para fazê-la avançar. Tal conduta impele o progresso
científico sempre para frente, gerando novas discussões e descobertas.
Contrapondo-se aos ideias racionalistas - como os de karl
Popper, por exemplo - que procuram fixar a ciência num corpo rígido de
regras universais e invioláveis, Feyerabend aponta para as irregularidades que o cientista comete durante sua
prática, possibilitando assim o progresso científico. Tal ideal de enquadrar a
ciência nesses moldes, segundo nosso filósofo, se deve à ausência da análise
dos fatores culturais, sociais, políticos, etc., que permeiam a atividade do
cientista.
"A educação
científica tal como hoje a compreendemos tem precisamente esse objetivo.
Simplifica a 'ciência' pela simplificação de seus participantes: primeiro,
defini-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história
(a física, por exemplo, é separada da metafísica e da teologia) e recebe uma 'lógica'
própria. Um treinamento completo em tal 'lógica' condiciona então aqueles que
trabalham nesse campo; torna suas ações mais uniformes e também congela
grandes porções do processo histórico. Fatos 'estáveis'
surgem e mantém-se a despeito das vicissitudes da história."[2]
Dando continuidade à crítica aos filósofos que buscam
prescrever uma metodologia científica, Feyerabend questiona se é preferível dar
apoio a tal visão de ciência, visto que de acordo com ela, tal tradição (a
ciência) ganharia autoridade dentro da sociedade pelo fato de parecer ser um
padrão objetivo - e, portanto, universal - de medida e isenta de fatores
humanos. "E minha resposta, a essas perguntas, será um firme e sonoro
NÃO" (FEYERABEND, p. 34).
Para justificar essa reposta, ele fornece duas razão. A
primeira é concernente ao fato de que o mundo é um grande desconhecido e, por
isso, qualquer tentativa de impor regras fixas para conhecê-lo terá um grande
fracasso como resultado. As regras só surgem depois de algo descoberto,
ou seja, diz respeito a fatos do passado que já ficaram mais que conhecidos. Se
o cientista quiser buscar algo de novo, velhas prescrições dificilmente o
ajudarão nessa empreitada.
"Prescrições
epistemológicas podem parecer esplêndidas quando comparadas com outras
prescrições epistemológicas ou com princípios gerais - mas quem pode garantir
que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos 'fatos' isolados,
mas também alguns profundos segredos da natureza?"[3]
A segunda razão diz respeito a liberdade do ser humano em
criar e poder escolher suas próprias "regras" para uma vida feliz.
Feyerabend se preocupa muito com essa questão, tornando-a o centro de seus
argumentos. Para ele, atacar a ideia de que existam padrões universais -
gerando assim, tradições rígidas - é importante, pois isso permitirá ao
cientista uma total liberdade na elaboração de suas teorias e
experimentos.
O princípio tudo
vale
Como dito anteriormente, a história da ciência impõe
dificuldades na elaboração de regras rígidas, imutáveis e obrigatórias na hora
de traçar uma diretriz para a ciência. Não houve sequer uma regra que não tenha
sido violada pelos cientistas, e tal violação nem sempre foi resultado de algum
tipo de desatenção, mas foi decididamente quebrada. Feyerabend cita exemplos
históricos como o atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, a
emergência gradual da teoria ondulatória da luz, dizendo que "ocorreram apenas
porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas
regras metodológicas 'óbvias', ou porque as violaram
inadvertidamente." (ibidem, p. 37).
Conclui de maneira categórica que isso não é apenas um fato da história, mas é absolutamente
necessário que assim ocorra para não inibir o desenvolvimento do conhecimento.
Então, hipótese ad hoc,
hipóteses que contradigam resultados experimentais bem estabelecidos, hipóteses
inconsistentes, etc., serão sempre bem-vindas na prática científica.
Por exemplo, pode-se fazer avançar a ciência procedendo contraindutivamente. Ao
contrário do empirismo, cuja essência é a regra que diz que "fatos" e
"resultados experimentais" medem o êxito das teorias científicas, a contraregra aconselha-nos "introduzir e
elaborar hipóteses que sejam inconsistentes com teorias bem estabelecidas e/ou
fatos bem estabelecidos" (ibid., p. 43). Em outras palavras, aconselha-nos
a proceder contraindutivamente.
Contudo, uma pergunta surge naturalmente: "é a
contraindução mais razoável do que a indução?"(ibid., p. 43). Essa
pergunta será respondida em duas etapas. A primeira consiste em examinar a
contraregra que incita o desenvolvimento de hipóteses inconsistentes com
teorias bem aceitas e confirmadas, e a segunda que incita a proliferação de
hipóteses inconsistentes com "resultados experimentais" bem
estabelecidos.
Na primeira etapa, uma evidência potencialmente refutadora
de uma teoria bem estabelecida só aparece quando comparada com uma alternativa
incompatível. Feyerabend argumenta que algumas importantes propriedades
formais de uma teoria são descobertas por contraste, não por análise (ibid., p.
44). Então, se um cientista quer testar o alcance do conteúdo empírico de sua
teoria, ele deve adotar uma metodologia
pluralista.
Aqui aparece pela primeira vez a expressão "pluralismo
metodológico". Tal expressão é importante pois ela é o sinônimo menos
polêmico do princípio tudo
vale. Ao pronunciar desta forma, Feyerabend quer dizer que sua filosofia
não comporta um relativismo ingênuo e, portanto, prejudicial. Ele nunca
promoveu uma rejeição de regras. Contudo, ao criticar as exigências de uma
possível "regra universal", ele se preocupou em oferecer liberdade
total ao cientista - coisa que seria impossível, caso regras universais fossem
impostas. Vê-se que o princípio tudo
vale não passa de um
pluralismo metodológico benéfico à prática científica e o único meio de não
inibir o progresso da ciência. Nas palavras dele:
"Minha intenção não
é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto da mesma espécie:
minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas
as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor
maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de
algumas regras que ela ou ele tenderia a considerar básicas. No caso da indução
(inclusive a indução por falseamento), isso significa demonstrar quão bem o
procedimento contraindutivo pode ser apoiado por argumentação. Recorde-se,
sempre, que as demonstrações e a retórica empregadas não expressam nenhuma
"convicção profunda" de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil é
fazer, de maneira racional, que alguém nos siga cegamente. Um anarquista é como
um agente secreto que participa do jogo da Razão de modo que solape a
autoridade da Razão."[4]
Na segunda parte da resposta à questão inicial, Feyerabend
argumenta que não é preciso uma defesa especial da tese. Retomando uma ideia
bem defendida por certos filósofos da ciência - incluindo Popper -, sobre a
anterioridade da teoria em relação aos fatos,
nosso filósofo não está mais interessado em saber se tais hipóteses
inconsistentes aos resultados experimentais são ou não bem-vindas, mas se as discrepâncias entre teoria e
fato devem ser aumentadas ou diminuídas.
Todavia, se admite-se que os fatos só passam a ser
observados, em seus próprios termos, por causa de uma teoria prévia - teoria
esta, que muitas vezes é inconsciente -, como elaborar tais hipóteses que
contradigam fatos "observáveis"?
"A resposta é
clara: não podemos descobri-lo a partir de dentro. Necessitamos de um padrão externo de crítica, necessitamos de um
conjunto de pressupostos alternativos, ou, já que esses pressupostos serão
bastante gerais, constituindo, por assim dizer, um mundo alternativo inteiro, necessitamos
de um mundo imaginário a fim de descobrir as características do mundo real que
pensamos habitar (e o
qual, na verdade, talvez seja apenas outro mundo imaginário)."[5]
Em outras palavras, como os termos que descrevem os fatos
observáveis de uma teoria são próprios dela, é necessário criar um outro
sistema de conceitos - que por sua vez trará um conjunto de novos termos (mesmo
que a palavra seja a mesma em ambas as teorias, seu
significado pode mudar substancialmente) - a fim de comparar tais sistemas
teóricos e dar continuidade ao processo contraindutivo.
Para exemplificar essas considerações, Feyerabend analisa o
caso de Galileu em sua luta contra os aristotélicos de sua época. Galileu
teria mudado as regras do jogo
de linguagem[6] dos
aristotélicos, onde estas tivessem dificuldade em sua aplicação, para defender
o ponto de vista copernicano. Uma dessas mudanças (sutilmente ardilosas), foi
substituir o significado da palavra "movimento"[7] para
um deslocamento geométrico espaço-temporal, ao invés de ser uma passagem de potência para ato,
ou em se tratando da queda dos corpos, como sendo a "tendência para ocupar
seu lugar natural".
Também para Galileu, a observação não é mais a evidência
imediata, mas uma evidência a ser julgada pelo raciocínio. Como por exemplo o
movimento da Terra que, para uma observação empírica imediata, claramente não
existe, sendo o Sol a mover-se em torna dela. Como uma semelhança de familía[8], Galileu reinterpreta fatos conhecidos
pelos aristotélicos e os introduz em seu novo jogo de linguagem. O que
corrobora com a contraregra que insiste na elaboração de hipóteses que
contrastem com os fatos bem
estabelecidos.
Se a contraindução proporciona o avanço científico, então a condição de consistência de uma teoria é uma opção
desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga, e não a melhor. Esta condição
exige que hipóteses novas sejam consistentes com as tais teorias.
"Hipóteses
contradizendo teorias bem confirmadas proporcionam-nos evidência que não pode
ser obtida de nenhuma outra maneira. A proliferação de teorias é benéfica para
a ciência, ao passo que a uniformidade prejudica seu poder crítico. A
uniformidade também ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo."[9]
Para encerrar a defesa da contraindução, Feyerabend
argumenta que não há uma única ideia no passado, por mais antiga e absurda que
possa parecer, que não seja capaz de aperfeiçoar a ciência. De tal maneira que
"toda a história do pensamento é absorvida na ciência e utilizada para o
aperfeiçoamento de cada teoria" (id., p. 59).
Essa visão integradora entre ciência e história é de suma
importância para a filosofia da ciência. De fato, se a contraindução estiver
correta, os cientistas podem pinçar qualquer teoria - desde os mitos antigos
até os preconceitos modernos - para promover um progresso científico. E aqui,
chega-se nas consequências últimas de se levar em conta o papel da história na
ciência:
[1] ARAÚJO P. S., Feyerabend e o pluralismo, Perspectivas contemporâneas em filosofia
da ciência, 2012, p. 132.
[2] FEYERABEND, 2011, p. 33-34.
[3] id., p. 34.
[4] ibid., p. 47.
[5] ibid.,
p. 46.
[6] item
7 de Investigações Filosóficas de
Wittgenstein.
[7] Para resumir, "movimento" siginifica a redução de potência para ato. É uma abordagem qualitativa, e não meramente quantitativa,
como queria Galileu.
[8] item
67 de Investigações Filosóficas.
[9] FEYERABEND,
p. 49.
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