quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Estrelando Feyerabend no Vale-Tudo: uma filosofia da ciência anárquica.


"Isto é demonstrado [o anarquismo epistemológico] tanto por um exame de episódios históricos quanto por uma análise abstrata da relação entre ideia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale.

- P. Feyerabend em  "Contra o Método", ed. Unesp, 2011.



Em 1975, o filósofo e físico Paul Feyerabend publica seu famoso livro Contra o Método onde defende ideias sobre um anarquismo epistemológico como resultado de uma análise histórica da ciência. Também disserta exaustivamente sobre os impactos culturais que se desdobram numa sociedade onde uma tradição específica se pretenda ter um caráter universal. Pode-se destacar cinco ideias centrais do autor:

1) não pressupunha mais fronteiras entre ciência e outros discursos;
2) desconsiderava a importância de uma metodologia universal;
3) não garantia mais a superioridade desta;
4) não a tornava um conhecimento verdadeiro ou mais próximo da verdade e, finalmente
5) duvida do pressuposto de que um mundo regido por uma única concepção (considerada a melhor), científica ou não, é necessariamente um mundo melhor para se viver.[1]


Anarquismo epistemológico
Feyerabend inicia seu livro Contra o Método com a afirmação de que a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico (FEYERABEND, 2011, p. 31). Para o filósofo, tal ideia surge devido à análise histórica da ciência, onde volta e meia os cientistas burlaram (em algum grau) as prescrições epistemo-metodológicas para fazê-la avançar. Tal conduta impele o progresso científico sempre para frente, gerando novas discussões e descobertas.

Contrapondo-se aos ideias racionalistas - como os de karl Popper, por exemplo -  que procuram fixar a ciência num corpo rígido de regras universais e invioláveis, Feyerabend aponta para as irregularidades que o cientista comete durante sua prática, possibilitando assim o progresso científico. Tal ideal de enquadrar a ciência nesses moldes, segundo nosso filósofo, se deve à ausência da análise dos fatores culturais, sociais, políticos, etc., que permeiam a atividade do cientista.

"A educação científica tal como hoje a compreendemos tem precisamente esse objetivo. Simplifica a 'ciência' pela simplificação de seus participantes: primeiro, defini-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante da história (a física, por exemplo, é separada da metafísica e da teologia) e recebe uma 'lógica' própria. Um treinamento completo em tal 'lógica' condiciona então aqueles que trabalham nesse campo; torna suas ações mais uniformes e também congela grandes porções do processo histórico. Fatos 'estáveis' surgem e mantém-se a despeito das vicissitudes da história."[2]

Dando continuidade à crítica aos filósofos que buscam prescrever uma metodologia científica, Feyerabend questiona se é preferível dar apoio a tal visão de ciência, visto que de acordo com ela, tal tradição (a ciência) ganharia autoridade dentro da sociedade pelo fato de parecer ser um padrão objetivo - e, portanto, universal - de medida e isenta de fatores humanos. "E minha resposta, a essas perguntas, será um firme e sonoro NÃO" (FEYERABEND, p. 34).

Para justificar essa reposta, ele fornece duas razão. A primeira é concernente ao fato de que o mundo é um grande desconhecido e, por isso, qualquer tentativa de impor regras fixas para conhecê-lo terá um grande fracasso como resultado.  As regras só surgem depois de algo descoberto, ou seja, diz respeito a fatos do passado que já ficaram mais que conhecidos. Se o cientista quiser buscar algo de novo, velhas prescrições dificilmente o ajudarão nessa empreitada.

"Prescrições epistemológicas podem parecer esplêndidas quando comparadas com outras prescrições epistemológicas ou com princípios gerais - mas quem pode garantir que sejam o melhor modo de descobrir não somente uns poucos 'fatos' isolados, mas também alguns profundos segredos da natureza?"[3]

A segunda razão diz respeito a liberdade do ser humano em criar e poder escolher suas próprias "regras" para uma vida feliz. Feyerabend se preocupa muito com essa questão, tornando-a o centro de seus argumentos. Para ele, atacar a ideia de que existam padrões universais - gerando assim, tradições rígidas - é importante, pois isso permitirá ao cientista uma total liberdade na elaboração de suas teorias e experimentos. 

 O princípio tudo vale
Como dito anteriormente, a história da ciência impõe dificuldades na elaboração de regras rígidas, imutáveis e obrigatórias na hora de traçar uma diretriz para a ciência. Não houve sequer uma regra que não tenha sido violada pelos cientistas, e tal violação nem sempre foi resultado de algum tipo de desatenção, mas foi decididamente quebrada. Feyerabend cita exemplos históricos como o atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, a emergência gradual da teoria ondulatória da luz, dizendo que "ocorreram apenas porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas 'óbvias', ou porque as violaram inadvertidamente." (ibidem, p. 37).

Conclui de maneira categórica que isso não é apenas um fato da história, mas é absolutamente necessário que assim ocorra para não inibir o desenvolvimento do conhecimento. Então, hipótese ad hoc, hipóteses que contradigam resultados experimentais bem estabelecidos, hipóteses inconsistentes, etc., serão sempre bem-vindas na prática científica.

Por exemplo, pode-se fazer avançar a ciência procedendo contraindutivamente. Ao contrário do empirismo, cuja essência é a regra que diz que "fatos" e "resultados experimentais" medem o êxito das teorias científicas, a contraregra aconselha-nos "introduzir e elaborar hipóteses que sejam inconsistentes com teorias bem estabelecidas e/ou fatos bem estabelecidos" (ibid., p. 43). Em outras palavras, aconselha-nos a proceder contraindutivamente.

Contudo, uma pergunta surge naturalmente: "é a contraindução mais razoável do que a indução?"(ibid., p. 43). Essa pergunta será respondida em duas etapas. A primeira consiste em examinar a contraregra que incita o desenvolvimento de hipóteses inconsistentes com teorias bem aceitas e confirmadas, e a segunda que incita a proliferação de hipóteses inconsistentes com "resultados experimentais" bem estabelecidos.

Na primeira etapa, uma evidência potencialmente refutadora de uma teoria bem estabelecida só aparece quando comparada com uma alternativa incompatível.  Feyerabend argumenta que algumas importantes propriedades formais de uma teoria são descobertas por contraste, não por análise (ibid., p. 44). Então, se um cientista quer testar o alcance do conteúdo empírico de sua teoria, ele deve adotar uma metodologia pluralista.

Aqui aparece pela primeira vez a expressão "pluralismo metodológico". Tal expressão é importante pois ela é o sinônimo menos polêmico do princípio tudo vale. Ao pronunciar desta forma, Feyerabend quer dizer que sua filosofia não comporta um relativismo ingênuo e, portanto, prejudicial. Ele nunca promoveu uma rejeição de regras. Contudo, ao criticar as exigências de uma possível "regra universal", ele se preocupou em oferecer liberdade total ao cientista - coisa que seria impossível, caso regras universais fossem impostas. Vê-se que o princípio tudo vale não passa de um pluralismo metodológico benéfico à prática científica e o único meio de não inibir o progresso da ciência. Nas palavras dele:

"Minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto da mesma espécie: minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de algumas regras que ela ou ele tenderia a considerar básicas. No caso da indução (inclusive a indução por falseamento), isso significa demonstrar quão bem o procedimento contraindutivo pode ser apoiado por argumentação. Recorde-se, sempre, que as demonstrações e a retórica empregadas não expressam nenhuma "convicção profunda" de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil é fazer, de maneira racional, que alguém nos siga cegamente. Um anarquista é como um agente secreto que participa do jogo da Razão de modo que solape a autoridade da Razão."[4]

Na segunda parte da resposta à questão inicial, Feyerabend argumenta que não é preciso uma defesa especial da tese. Retomando uma ideia bem defendida por certos filósofos da ciência - incluindo Popper -, sobre a anterioridade da teoria em relação aos fatos, nosso filósofo não está mais interessado em saber se tais hipóteses inconsistentes aos resultados experimentais são ou não bem-vindas, mas se as discrepâncias entre teoria e fato devem ser aumentadas ou diminuídas.

Todavia, se admite-se que os fatos só passam a ser observados, em seus próprios termos, por causa de uma teoria prévia - teoria esta, que muitas vezes é inconsciente -, como elaborar tais hipóteses que contradigam fatos "observáveis"?

"A resposta é clara: não podemos descobri-lo a partir de dentro. Necessitamos de um padrão externo de crítica, necessitamos de um conjunto de pressupostos alternativos, ou, já que esses pressupostos serão bastante gerais, constituindo, por assim dizer, um mundo alternativo inteiro, necessitamos de um mundo imaginário a fim de descobrir as características do mundo real que pensamos habitar (e o qual, na verdade, talvez seja apenas outro mundo imaginário)."[5]

Em outras palavras, como os termos que descrevem os fatos observáveis de uma teoria são próprios dela, é necessário criar um outro sistema de conceitos - que por sua vez trará um conjunto de novos termos (mesmo que a palavra seja a mesma em ambas as teorias, seu significado pode mudar substancialmente) - a fim de comparar tais sistemas teóricos e dar continuidade ao processo contraindutivo.

Para exemplificar essas considerações, Feyerabend analisa o caso de Galileu em sua luta contra os aristotélicos de sua época. Galileu teria mudado as regras do jogo de linguagem[6] dos aristotélicos, onde estas tivessem dificuldade em sua aplicação, para defender o ponto de vista copernicano. Uma dessas mudanças (sutilmente ardilosas), foi substituir o significado da palavra "movimento"[7] para um deslocamento geométrico espaço-temporal, ao invés de ser uma passagem de potência para ato, ou em se tratando da queda dos corpos, como sendo a "tendência para ocupar seu lugar natural".

Também para Galileu, a observação não é mais a evidência imediata, mas uma evidência a ser julgada pelo raciocínio. Como por exemplo o movimento da Terra que, para uma observação empírica imediata, claramente não existe, sendo o Sol a mover-se em torna dela. Como uma semelhança de familía[8], Galileu reinterpreta fatos conhecidos pelos aristotélicos e os introduz em seu novo jogo de linguagem. O que corrobora com a contraregra que insiste na elaboração de hipóteses que contrastem com os fatos bem estabelecidos.

Se a contraindução proporciona o avanço científico, então a condição de consistência de uma teoria é uma opção desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga, e não a melhor. Esta condição exige que hipóteses novas sejam consistentes com as tais teorias.

"Hipóteses contradizendo teorias bem confirmadas proporcionam-nos evidência que não pode ser obtida de nenhuma outra maneira. A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade prejudica seu poder crítico. A uniformidade também ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo."[9]

Para encerrar a defesa da contraindução, Feyerabend argumenta que não há uma única ideia no passado, por mais antiga e absurda que possa parecer, que não seja capaz de aperfeiçoar a ciência. De tal maneira que "toda a história do pensamento é absorvida na ciência e utilizada para o aperfeiçoamento de cada teoria" (id., p. 59).

Essa visão integradora entre ciência e história é de suma importância para a filosofia da ciência. De fato, se a contraindução estiver correta, os cientistas podem pinçar qualquer teoria - desde os mitos antigos até os preconceitos modernos - para promover um progresso científico. E aqui, chega-se nas consequências últimas de se levar em conta o papel da história na ciência:

 "A separação entre a história de uma ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolve-se no ar, e isso também se dá com a separação entre ciência e não ciência."(ibid., p.60).



[1]  ARAÚJO P. S., Feyerabend e o pluralismo, Perspectivas contemporâneas em filosofia da ciência, 2012, p. 132.
[2] FEYERABEND, 2011, p. 33-34.
[3] id., p. 34.
[4] ibid., p. 47.
[5] ibid., p. 46.
[6] item 7 de Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
[7] Para resumir, "movimento" siginifica a redução de potência para ato. É uma abordagem qualitativa, e não meramente quantitativa, como queria Galileu.
[8] item 67 de  Investigações Filosóficas.
[9] FEYERABEND, p. 49.

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