"Você finalmente entendeu! Kirillov gritou extasiado. Assim pode ser entendido, se mesmo alguém como você compreende! Você compreende agora que para a salvação de todos é preciso provar este pensamento. Quem vai provar isso? Eu! Não entendo como, até agora, um ateu podia saber que Deus não existe e não se matar ao mesmo tempo. Reconhecer que não há Deus, e ao mesmo tempo, não a reconhecer que você se tornou Deus, é um absurdo, caso contrário, você deve necessariamente se matar. Uma vez que você entende isto, você é o Rei, você não vai se matar, mas sim, viver na maior glória. Mas, aquele que é o primeiro, deve necessariamente se matar, caso contrário, quem irá começar e provar isso? Sou eu que vou necessariamente me matar, a fim dar início e provar isso. Deus está contra a minha vontade, e eu sou infeliz porque é o meu dever de proclamar a vontade própria. Todo mundo é infeliz, porque todo mundo tem medo de proclamar a vontade própria. É por isso que o homem tem sido tão infeliz e pobre até hoje, porque ele estava com medo de proclamar o ponto principal da auto-vontade e foi obstinado a viver apenas nas margens, como um adolescente. Estou terrivelmente infeliz, porque eu estou com muito medo. O medo é a maldição do homem ... Mas eu vou proclamar a vontade própria, é meu dever acreditar que eu não acredito. Vou começar, e no final, deixarei aberta a porta. E salvarei. Apenas esta maneira salvará todos os homens e na próxima geração irá transformá-los fisicamente. Na forma física presente, tanto quanto eu tenho pensado, não há possibilidade para o homem sem o seu antigo Deus. Por três anos tenho buscando o atributo da minha divindade, e descobri-lo: o atributo da minha divindade é – a vontade própria Isso é tudo, desta maneira posso demonstrar a questão principal de minha insubordinação e mina nova assustadora liberdade. Por isso é muito assustador. Me matarei para mostrar provar minha insubordinação e a minha nova assustadora liberdade ".
- Fiódor Dostoiévski, Os Demônios
Albert
Camus (1913-1960), escreveu vários ensaios cuja temática central era a noção do
que denominou de absurdo. Em seu
ensaio intitulado “O mito de Sísifo”, Camus elabora e descreve[1]
filosoficamente tal conceito, ao passo que em seus romances, como por exemplo
“O Estrangeiro”, o absurdo é
encarnado em seu protagonista Mersault.
Fiodor
Dostoiévski (1821-1881), teve grande influência no pensamento camusiano. Seus
personagens encarnam dramas existenciais complicadíssimos e dentro deles
questões como a existência de Deus, a imortalidade da alma, o suicídio lógico
ganham um vigor terrível. É sobre esses temas que Camus irá se debruçar ao
escrever seu ensaio sobre o absurdo.
Toda
obra de Camus gira em torna da noção de absurdo.
Especialmente em “O mito de Sísifo”, o autor destrincha esse conceito que deve
ser descrito com detalhes. Não se trata do uso comum que essa palavra adquiriu
como sendo algo destituído de regras ou de racionalidade. Absurdo é a constatação de uma desarmonia entre a maravilha que
esse mundo nos apresenta e sua total indiferença para com o homem. É quando o
humano se dá conta de que a vida não possui um sentido mais profundo a ser
desvelado, ou quando observa que a mesma não possui um significado.
O
sentimento do absurdo consiste no divórcio entre o homem e o mundo, isto é, a
avidez humana em buscar um significado e a total indiferença que o mundo
apresenta. Tal sentimento suscita uma questão de suma importância como o
suicídio. Se não há sentido na vida, se tudo é redutível a total indiferença,
por que não acabar com a própria existência? Camus considera esse problema como
central.
Só
existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida
vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da
filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou
doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo,
responder. E se é verdade como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser
confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta,
já que ela vai preceder o gesto definitivo.[2]
A
resposta encontrada pelo autor é a de que o suicídio é ilegítimo para aqueles
que vivem a experiência absurda. O
confronto que o homem absurdo deve
viver seria finalizado pelo suicídio. Ora, após a experiência do absurdo tornar tudo indiferente, se tal
homem resolvesse se matar por não a suportar ele estaria dando uma importância
para sua vida e isto entraria em contradição com sua experiência. É, portanto,
ilógico, do ponto de vista da lógica absurda,
o suicídio.
A
lógica não pode encontrar satisfação numa atitude que deixa perceber que o assassinato
ora é possível, ora impossível. Isso porque a análise absurda, após ter tornado
no mínimo indiferente o ato de matar, na mais importante de suas conseqüências,
acaba por condená-lo. A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a
rejeição do suicídio e a manutenção desse confronto desesperado entre a
interrogação humana e o silencio do mundo. O suicídio significaria o fim desse
confronto. (...) Tal conclusão, segundo ele, seria fuga ou liberação. Mas fica claro
que, ao mesmo tempo, esse raciocínio admite a vida como o único bem necessário
porque permite justamente esse confronto (...). Para dizer que a vida é absurda,
a consciência tem necessidade de estar viva.[3]
Entretanto,
mesmo com a recusa camusiana do suicídio, o autor elenca um personagem
literário como o perfeito homem-absurdo.
Estamos falando de Kirilov, do romance “Os demônios” de Dostoiévski que se mata
para mostrar ao mundo sua descoberta de que Deus não existe. Parece que Kirílov
é um personagem intricado que deve ser analisado com mais cautela.
Durante
o romance, Kirílov declara que precisa se matar porque “é sua ideia”. Tal ideia
surge por sentir que Deus é necessário e é preciso demais que ele exista,
contudo, não existe e nem pode existir. Esta constatação, de acordo com o
personagem, é suficiente para pôr fim à sua vida. Não se trata de uma vingança
metafísica, mas, numa linguagem camusiana, uma revolta.
Ele
quer se matar porque tal ato designa sua maior liberdade: “Vou me matar para
afirmar a minha maior insubordinação, a minha nova e terrível liberdade”. Seu
raciocínio segue uma lógica absurda:
se Deus não existe, Kirílov é deus; se Deus não existe, Kirílov deve se matar;
portanto, deve se matar para virar deus. A questão gira em torna de reconduzir
a divindade à terra. Pois, se Deus não existe eu sou deus, significa que não
sirvo a um imortal, portanto, sou livre, sou deus.
Tanto
para Nietzche quanto para Kirílov, matar Deus é tornar-se deus, isto é,
realizar a vida eterna de que falam os Evangelhos[4].
Essa inversão de ideias – quando comparadas com as dos Evangelhos – pode
suscitar uma distinção entre a figura do Cristo (deus-homem) e a de Kirílov
(homem-deus). Todavia, o próprio personagem diz que Cristo encarnou o absurdo, foi ludibriado pela natureza.
“As leis da natureza fizeram Cristo viver no meio da mentira e morrer por uma
mentira”. Portanto, existe mais uma anexação entre essas duas figuras do que uma
distinção. E, por isso, Kirilov deve morrer para mostrar aos homens a verdade
sobre a existência.
Finalmente
aqui chega-se no porque Camus aceita o suicídio de Kirílov. Como este deve
morrer para mostrar o caminho da salvação, deve ser o primogênito da nova era
de homens e, por isso, tornar-se o redentor da humanidade. É, portanto, um
suicídio pedagógico.
O
tiro da pistola de Kirílov será o sinal da última revolução. Não é, assim, o
desespero que o impele à morte, mas o amor ao próximo como a si mesmo. Antes de
encerrar com sangue um indizível aventura espiritual, Kirílov tem uma palavra
tão velha quanto o sofrimento dos homens: “Está tudo bem.”[5]
Dostoiévski versus Camus
A
obra de Dostoiévski é marcada pelo sentimento que Camus denominou de absurdo. Seus personagens mais evidentes
passam por inúmeros conflitos existenciais, geralmente marcados pela
inexistência de Deus e pelo niilismo.
Desde a ironia demoníaca de Stavróguin até a constatação miserável e
preocupante do “tudo é permitido” de Ivã Karamázov, Dostoiévski aborda com
profunda sensibilidade o absurdo.
Entretanto,
apesar da profunda análise sobre a condição humana e a ausência de sentido,
Dostoiévski busca uma solução para o problema que o absurdo impõe. Como recuperar a esperança de um significado para a
vida após ter experimentado a mística absurda?
A fé na imortalidade da alma. “Se a fé é tão necessária ao ser humano (...), é
porque ela é o estado normal da humanidade. Visto que isso acontece, a
imortalidade da alma humana existe sem dúvida.” (Dostoiévski em seu Diário de um escritor).
Além
disso, segundo Camus, a conclusão de “Os Irmãos Karámazov” expressa pela boca
de Aliócha – que afirma indubitavelmente a imortalidade da alma – responde ao
problema nevrálgico posto em “Os demônios”. Assim, Stavróguin, Kirílov e até
mesmo Ivã Karamázov são vencidos por este salto
de fé[6].
Torna-se
necessário dizer que para Camus qualquer busca por uma recuperação da
esperança, uma explicação que liberte o homem do absurdo ou algo que extrapole a mera descrição do problema absurdo é um salto de fé. Salto esse que ele quer abolir por completo, mostrando
aos homens que a experiência absurda
é a própria condição humana por excelência. É por isso que Dostoiévski não é
considerado por ele um autor absurdo,
mas um autor que apresenta o
problema absurdo[7].
Reflexões das consequências
absurdas
Ainda
analisando o caso Kirílov, pode-se traçar algumas consequências que suas ideias
geraram. Como dito anteriormente, o suicídio deste personagem é algo
messiânico, serve para mostrar aos demais as verdades absurdas. O próprio Camus diz um pouco algumas consequências deste
feito:
Stavróguin
e Ivã karamázov experimentaram na vida prática o exercício de verdades
absurdas. São eles que a morte de Kirílov liberta. Tentam ser czares.
Stavróguin leva uma vida “irônica”, sabe-se bem qual. Faz-se erguer o ódio em
torno dele. E, no entanto, a palavra-chave desse personagem está em sua carta
de despedida: “Eu não pude detestar nada.” É czar na indiferença.[8]
Não
somente o suicídio de Kirílov liberta esses demônios, como sua vida até o
momento derradeiro também o faz. Segundo uma análise de Soares da Costa[9] em
seu blog[10],
as atrocidades cometidas pelo grupo dos cinco em “Os demônios” têm o respaldo
de Kirilov.
A
justificativa para essa afirmação é que Kirilov aceita assinar uma carta
escrita por Verkhonvski assumindo a responsabilidade do futuro assassinato do
jovem Chatov. Nada melhor do que o “homem novo” – representado por Kirilov –
para dar o aval apriorístico da destruição que Verkhonvski simboliza. Em outras
palavras, é sob esse espírito da negação – de negar a existência de Deus, a
imortalidade da alma, os valores – que a revolução emergirá. E, por mais que
Kirilov não seja a causa eficiente do homicídio dos vários “Chatovs” que irão
surgir, certamente é a causa final, pois é para lá que a humanidade irá
caminhar: na indiferença total.
Considerações Finais
O
tema do absurdo posto por Camus
levanta sérias reflexões sobre a existência humana. E, mesmo que o suicídio
tenha sido descartado por ele – como uma possível consequência lógica do absurdo –, o personagem doistoievskiano
Kirilov foi tido como um homem-absurdo
por excelência. Viu-se o motivo para que Camus aceitasse o suicídio
kiriloviano. Mas, mesmo assim, algumas consequências funestas advindas da
experiência absurda foram elencadas e
uma questão se põe ao leitor: após a exposição do absurdo e doo salto, qual
posição escolher: Ficar com Camus e admitir o absurdo como condição humana inevitável ou com Dostoiévski e
aceitar a fé como tal condição? Ser Aliócha e estar convicto da imortalidade da
alma ou Merseaut e viver a “experiência mística” da total indiferença?
Referências
CAMUS, Albert. O homem
revoltado. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
CAMUS, Albert. O mito
de Sísifo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
COSTA, Rogério Soares. Dostoievski: Kirilov,
Verkhovenski e o espírito da negação disponível em http://oleniski.blogspot.com.br/2011/10/dostoievski-kirilov-verkhovenski-e-o.html , acesso em 28/12/2017.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os
irmãos Karamazov. São Paulo: Martin Claret, 2003.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os
Demônios. São Paulo: Editora 34, 2013.
FONSECA, Ludmila
Carvalho. O homem extraordinário de Fiodor Dostoievski e o homem revoltado de
Abert Camus. Dissertação de Mestrado. Brasília, 2010.
[1]
É importante ressaltar que
Camus não busca uma explicação para o absurdo,
mas uma descrição. O absurdo para o
autor impele o homem a não mais buscar explicações para a realidade, visto que
não existe um sentido oculto no mundo. Portanto, o homem-absurdo quando cria algo só o cria para descrever um dado da
realidade, sem pretensões de caráter explicativo.
Para uma compreensão maior sobre a criação absurda, vide o capítulo “A criação
absurda” em “O mito de Sísifo”.
[2] CAMUS (1989), p. 23.
[3] CAMUS (1999), p. 16-17.
[4] CAMUS (1989), P. 63.
[5] CAMUS (1989), p. 64.
[6] CAMUS (1989), p. 65.
[7] CAMUS (1989), p.66.
[9] Rogério Soares da Costa. Professor
adjunto do Departamento de Filosofia da UERJ e do Departamento de Filosofia da
PUC-Rio. Leciona Epistemologia, Filosofia da Ciência, Filosofia da Natureza,
Metafísica e Filosofia da Religião.
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