quarta-feira, 22 de junho de 2016

Conversando sobre Deus: um diálogo entre Anselmo e Descartes




"Eia, vamos homem! Foge por um pouco às tuas ocupações, esconde-te dos teus pensamentos tumultuados, afasta as tuas graves preocupações e deixa de lado as tuas trabalhosas inquietudes. Busca, por um momento, a Deus, e descansa um pouco nele. Entra no esconderijo da tua mente, aparta-te de tudo, exceto de Deus e daquilo que pode levar-te a ele, e, fechada a porta, procura-o."

- Santo Anselmo in Proslógio, cap. I


“E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito ao menos tão certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas (...)”

- René Descartes in Meditações Metafísicas, quinta meditação.




O argumento ontológico de Santo Anselmo do “ser do qual não se pode pensar nada maior”, usado para demonstrar a existência de Deus, provavelmente influenciou René Descartes à provar igualmente a existência de um ser “soberanamente perfeito”. A similaridade de ambos argumentos é notável, ainda mais quando percebe-se que estes são totalmente a priori. Embora o foco metódico de cada autor seja diferente, parece que este é um caso onde as diferenças não importam muito pois, tanto o argumento anselmiano quanto o cartesiano giram em torno da pura análise do conceito de Deus.

Para uma breve apresentação dos autores, Anselmo – um agostiniano do século XI – é requisitado pelos seus irmãos monges a fornecer um argumento puramente racional que demonstre a existência de Deus. Após inúmeras reflexões, que o fizeram pensar num único argumento válido por si e em si, sem nenhum outro, Anselmo escreve seu Proslógio onde se encontra seu famoso argumento ontológico. Ressalta-se que não se trata de fundar a fé na razão mas, antes, fornecer fundamentos racionais para o que já se crê, tornando o conteúdo da Revelação inteligível.

René Descartes, físico, filósofo e matemático do século XVII, escreve suas Meditações Metafísicas com o intuito de obter ideias claras e distintas, as quais não se pode duvidar. Para encontrá-las, ele adota uma dúvida metódica que consiste em dar como falso qualquer evento que mostre a menor dúvida. Logo no início de sua primeira meditação ele admite como falso todas as opiniões que até então aprendera. Em outras palavras, tudo aquilo que o foi ensinado – filosofia e ciências medievais. Sua proposta é partir do zero.


Já de antemão pode-se perceber a diferença de abordagens que os dois autores possuem. Um é o monge agostiniano que coloca a razão como serva da teologia revelada; outro, negando todas as opiniões que se mostrarem minimamente duvidosas. Contudo, essas diferenças parecem que somem quando ambos demonstram a existência de Deus.

No capítulo II de seu Proslógio, Anselmo define o conceito de Deus como sendo o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. À primeira vista esta definição não diz nada a respeito da existência de Deus, contudo, ao analisá-la cautelosamente se torna impossível dizer como o incrédulo: “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe” (Sl 13,1).


Geralmente, o conceito de algo não implica em sua existência. Por exemplo, pode-se pensar num “unicórnio”. Pode-se, inclusive, pensá-lo como existente. Todavia, não existe nada em seu conceito que force sua real existência. Em suma, não há contradição lógica no fato do unicórnio não existir. 

Coisa bem diferente acontece com o conceito de Deus. Pois, se o “ser do qual não se pode pensar nada maior” só existir na mente de quem o pensa, faltar-lhe-ia uma perfeição que é a existência extra mentis e, portanto, deixaria de ser o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. 

Toda a questão gira em torno de duas possibilidades: ou o “ser do qual não se pode pensar nada maior” só existe na mente de quem pensa; ou, existe também fora. Silogismo disjuntivo simples: 

A v B 

~B 

:. A 


O que distingue quaisquer dois seres é o fato de um possuir uma ou mais propriedades que o outro não têm. Se o “ser do qual não se pode pensar nada maior” não possuir a propriedade de existir extra mentis, então ele será limitado e, poder-se-ia continuar pensando em outro ser do mesmo tipo que exista extra mentis. Logo, se ele é limitado, deixa de ser o “ser do qual não se pensar nada maior”, o que é uma contradição. Por isso, é necessário – logicamente falando – que o “ser do qual não se pode pensar nada maior” exista também fora da mente de quem pensa, pois ele não pode ser privado de qualquer perfeição, senão deixaria de ser o “ser do qual não se pode pensar nada maior”. 

Pode-se dizer que o conceito de Deus é o único conceito que implica na existência do conceituado. É necessário que seja assim, caso contrário existiria uma contradição interna do próprio conceito. E é seguindo esta lógica que Descartes também demonstrará a existência de Deus na quinta meditação.

Após já ter estabelecido seu critério de verdade nas meditações anteriores, Descartes passa a considerar o que ele sabe clara e distintamente de uma série de ideias. Mesmo que ainda não possa afirmar que algo exista fora da res cogitans, cada ideia possui sua forma, sua natureza, que Descartes irá analisar. 

Quando se pensa num triângulo, sabe-se, clara e distintamente, que é um polígono de três lados. Ainda que ele não exista fora de mim, sua natureza é distinta e indubitável, mesmo que seja na qualidade de um objeto meramente possível. 

Sem dúvida, pode-se passar a vida inteira sem jamais pensar na ideia de um triângulo. Contudo, o que Descartes enfatiza é o fato de que a partir do momento em que se concebe clara e distintamente sua ideia, não se pode atribuir nada à ela que a contradiga. Isto é, não se pode mudar sua definição como, por exemplo, dizer que um triângulo é um quadrado de três lados. Isto porque a natureza de tal objeto não é decidida pelos homens como uma convenção. Ela é absolutamente eterna e imutável e, isto, significa conhecer algo clara e distintamente. 

Por ser a natureza da ideia independente, pode-se conhecer sua exata definição – “triângulo é um polígono de três lados” – contudo, não é tudo que se pode derivar daí. Ele possui propriedades que só se descobre posteriormente – por exemplo, que a soma de seus ângulos internos é sempre 180 graus – mas que só são descobertas porque o triângulo é o que é. Em suma, pode-se demonstrar que tais propriedades se seguem da natureza das ideias. 

Se isto é verdade para as ideias geométricas e matemáticas, também para Deus aplica-se o mesmo raciocínio. Isto é, buscar as propriedades que se seguem da natureza de sua ideia. É aqui que a semelhança do argumento anselmiano surge. Pois, se se sabe que estas propriedades derivadas do conceito são necessárias, e se sabe-se que Deus é um ser soberanamente perfeito – como diz Descartes – Sua existência também é necessária. 

Um ser soberanamente perfeito e ilimitado não pode ser privado de existência, caso contrário faltar-lhe-ia algo. Ele deve existir necessariamente assim como a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus ou assim como uma montanha sempre vem acompanhada de um vale (como diz Descartes). Dizer o contrário é contradizer a natureza da ideia de Deus. 

Invocando a distinção escolástica entre essência e existência, Descartes afirma que essas qualidades não podem ser separadas em Deus. Pois, de novo, dizemos que a concepção de algo não implica em sua existência – o exemplo do unicórnio acima ainda é válido. Contudo, conceber um Deus (um ser soberanamente perfeito) não-existente é o mesmo que conceber um triângulo quadrado. Em Deus, essência e existência estão inextricavelmente associadas. 

A existência de Deus é um fato mesmo que eu não pense atualmente em Seu conceito. Assim como uma pessoa pode passar a vida toda sem nunca pensar num quadrado, seu conceito existe de forma independente. Mas, a partir do momento em que se concebe a ideia de um ser soberanamente perfeito, se torna uma questão de tempo para descobrir as propriedades inerentes a ele – neste caso, sua existência extra mentis. 

Parece que esse argumento é tão certo e indubitável que se pode pensar nele mesmo sem ter lido as meditações anteriores. Com efeito, “E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito ao menos tão certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas (...)”

Existe, de fato, muita semelhança entre os dois argumentos citados acima. Os dois giram em torno da questão: se Deus é perfeito, então não se lhe pode faltar nada, nem a existência. Se ambos fossem escritos na mesma época, poder-se-ia conjecturar que era um pensamento quase comum aos seus contemporâneos. Contudo, a diferença de séculos é notável; Anselmo século XI, Descartes, XVII. 

Por mais que a intenção cartesiana tenha sido a de construir seu sistema filosófico partindo do zero, Descartes não obteve sucesso. Percebe-se uma forte influência medieval em suas Meditações, como por exemplo seu cogito[1] que, de algum modo, estava presente em Agostinho; o princípio escolástico de proporcionalidade entre causa e efeito, presente em sua terceira meditação para provar a existência de Deus; o conceito de luz natural, também medieval; a distinção tomista entre essência e existência, sendo que em Deus ela não existe; e o argumento ontológico de Anselmo. 

Além disso, o próprio estilo literário das Meditações é o mesmo que do Proslógio – ambos são meditações. Ambos argumentos são a priori e possuem como ponto de partida a mesma abordagem conceitual: um diz que Deus é o “ser do qual nada se pode pensar maior”, outro diz que Ele é “soberanamente perfeito”, e por isso, Sua existência é necessária, caso contrário há uma contradição. 

Há quem diga que, embora os argumentos sejam parecidos eles estão situados em contextos diferentes. É justa a observação, contudo, um olhar minucioso para a quinta meditação dirá que o argumento cartesiano está um pouco descolado do resto das meditações. O próprio autor afirma – na passagem citada acima – que se tudo dito até o momento não convenceu, isto então convencerá – e lança o argumento ontológico de Anselmo. O que nos leva a pensar tal demonstração cartesiana como uma reformulação do argumento do monge medieval. 



[1] Este ensaio não tem a pretensão de dizer que Descartes plagiou os medievais. Somente está sendo exposto aqui que o projeto cartesiano não partiu do zero, tendo mais influências do medievo do que como se diz costumeiramente. 

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